A raiva é humana - mas para todos?
Quando a raiva feminina é deslegitimada, nega-se não apenas uma emoção, mas um direito humano fundamental.
Louca. Histérica. Descontrolada. Palavras que, com frequência, se associam à imagem de uma mulher quando ela ergue a voz, impõe limites ou expressa indignação. Gestos idênticos, quando partem de um homem, muitas vezes ganham outro nome: força, autoridade, liderança, assertividade. Essa diferença não é fruto do acaso, mas de séculos de regras não escritas que moldam o que se espera de cada gênero.
A raiva é uma emoção universal. Todos a sentimos e ela cumpre funções essenciais: comunicar necessidades, estabelecer limites, motivar ações e orientar decisões. Negar a uma mulher o direito de sentir e expressar raiva é negar a ela recursos de proteção e autonomia. Em contextos de violência, por exemplo, conseguir reconhecer (e validar) o próprio desconforto é o ponto de partida para buscar ajuda.
E esse aprendizado de expectativas de gênero começa cedo. Meninas são estimuladas a sorrir, ceder e “ser compreensivas”. Aprendem que demonstrar irritação pode custar carinho, respeito ou aceitação. Já os meninos são ensinados a reprimir fragilidade, tristeza e medo, enquanto a raiva - não raro expressa de maneira agressiva/violenta - é estimulada e valorizada. Essa análise ganha contornos ainda mais complexos quando pensamos nas diferenças a partir da raça. Um homem negro não pode manifestar a raiva da mesma maneira que um homem branco - e o mesmo vale para as mulheres brancas e negras.
A psicóloga Tatiana Freitas Foto: Divulgação
Esse aprendizado social das emoções tem um impacto direto em todas as áreas da nossa vida, desde relacionamentos interpessoais até carreiras profissionais e nossos processos de autoestima e autoconhecimento. As consequências desse padrão são profundas. Mulheres que não acessam ou expressam sua raiva de forma segura não vão experienciar o processo básico de autoconhecimento: perceber e descrever experiências internas. E, sendo assim, também não serão capazes de manejar essa emoção básica: impor limites, comunicar desconfortos e exercer posicionamentos importantes. Não se trata de incentivar explosões desmedidas, mas de devolver legitimidade a uma emoção que faz parte da experiência humana.
Nos últimos anos, a presença de personagens femininas mais assertivas no cinema e na literatura infantil vem ajudando a reverter estereótipos. Quando meninas veem mulheres em papéis diversos, aprendem que a assertividade não é algo a ser temido e que reivindicar espaços não é (ou não deveria ser) sinônimo de insanidade ou histeria.
Negar a raiva de uma mulher é negar sua humanidade. E reconhecer sua legitimidade é abrir espaço para sociedades mais honestas, justas e, sobretudo, seguras.
Tatiana Freitas Wandekoken é psicóloga clínica

